As mutações da direita argentina

17 de novembro 2023 - 10:50

O candidato de extrema-direita às presidenciais entrou em acordo com os representantes da direita tradicional, o ex-presidente Mauricio Macri e a candidata derrotada na primeira volta Patricia Bullrich. Do discurso do combate à “casta” e do “abaixo todos”, passou-se a um macrismo 2.0. Por Pablo Stefanoni.

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Milei. Foto publicado na NUSO.
Milei. Foto publicado na NUSO.

A ultrapassagem de Javier Milei à aliança de centro-direita Juntos por el Cambio (JxC) mexeu com as placas tectónicas do bloco não (ou anti) peronista da política argentina. Poucas horas depois de Milei ter passado à segunda volta, tanto a candidata do JxC, Patricia Bullrich, como o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) saíram em apoio do “libertário” e tentaram garantir que os votos de Bullrich na primeira volta (quase 24%) fossem transferidos em 19 de novembro para a candidatura do La Libertad Avanza (LLA), permitindo derrotar o peronista Sergio Massa. O apoio inconsulto de Macri a Milei, alinhado com a extrema-direita internacional (Vox, Jair Bolsonaro, Donald Trump), deixou o JxC perante uma ruptura de facto. Uma grande parte do principal parceiro do Macrismo, a centenária Unión Cívica Radica (UCR), recusa-se a dar esse apoio, tal como o sector liderado pelo presidente cessante da Câmara de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. Vários dos seus dirigentes optaram pelo voto em branco e outros por votar diretamente em Massa.

O novo apadrinhamento de Macri a Milei, um candidato completamente carente de estruturas e de equipas, visa apropriar-se do governo e, deste modo, ganhar politicamente o que o seu espaço não ganhou nas urnas. Mas, ao mesmo tempo, com esta jogada, Macri está a arriscar o seu próprio capital político numa aventura incerta: um governo de Milei, se ele chegar à presidência, seria uma espécie de salto no vazio.

A própria imagem utilizada por Macri para o apoiar não é propriamente tranquilizadora: “Estás num carro a 100 [km/h], vais chocar contra um muro e sabes que te vais matar. Então saltas do carro, vais sobreviver? Não sei, mas pelo menos tens uma hipótese”. O muro, para Macri, é Massa; saltar do carro é Milei. E à luz das sondagens, que antecipam um resultado muito equilibrado com uma ligeira vantagem para Milei, a maioria dos eleitores que votaram em Bullrich a 22 de outubro decidiu fazer sua a analogia e saltar do carro. O “pacto de Acassuso”, selado na casa de Macri, que fez de anfitrião, parece estar a funcionar. De qualquer modo, ninguém ficou surpreendido: após a sua saída do governo, Macri autocriticou-se por ter sido demasiado “gradualista” (moderado) e deu uma guinada decidida para a direita. Tal como noutras latitudes, podemos observar convergências entre a extrema-direita – com dificuldades em conseguir amplas vitórias eleitorais – e setores da direita convencional.

Mas este acordo transformou o próprio projeto de Milei. A “rebeldia de direita” – expressa na sua rejeição da “casta” política e na sua exigência de que “todos se vão embora” – transformou-se numa espécie de Macrismo 2.0 expresso no slogan "Kirchnerismo ou liberdade". Da narrativa anti-casta, passou-se ao discurso utilizado na campanha de Bullrich, que apelou ao fim do Kirchnerismo “para sempre”. Ao mesmo tempo, Milei procura distanciar-se das suas posições mais radicais – comércio de órgãos, armas livres e outras veleidades anarco-capitalistas – embora insista que fechará o Banco Central, que propôs várias vezes dinamitar.

Milei importou o paleolibertarianismo norte-americano de Murray Rothbard para a Argentina mas a sua adaptação ao ecossistema local não foi fácil. No final da sua vida, Rothbard propôs uma aliança dos libertários com a “velha direita” americana, incluindo grupos de supremacia branca que se opõem ao poder federal. Chamou-se a este casamento “paleolibertarianismo”. O libertário nova-iorquino acreditava que o Partido Libertário, que ele próprio tinha ajudado a fundar, se tinha tornado um viveiro de hippies anti-autoritários. Rothbard não se opunha à autoridade em si mas à autoridade do Estado. No seu momento paleo, chegou ao ponto de promover alianças com a direita religiosa com base na autonomia de cada Estado ou comunidade – embora fosse a favor do direito ao aborto, defendia que cada governo local tinha o direito de o autorizar ou proibir e que, com base nessa “autonomia” sobre qualquer aspeto da vida social, os libertários podiam alargar as suas alianças (se uma comunidade não quisesse negros, por exemplo, tinha o direito de os segregar também).

O seu artigo de 1992 “Right-wing populism: a strategy for the paleo movement” foi bastante profético. Rothbard percebeu precocemente a rebelião popular nas bases do Partido Republicano que daria origem primeiro ao Tea Party e depois ao Trumpismo.

Num país sem as tradições de “autonomia de direita” que existem nos Estados Unidos – onde pululam vários grupos anti-Washington, muitas vezes armados –, Milei combinou a Escola Austríaca na sua versão mais radical (anarco-capitalista) com elementos das direitas alternativas globais, geralmente de forma não muito digerida.

O economista armou então uma aliança entre o libertarismo de direita e o nacionalismo reacionário, corporizado em Victoria Villarruel. A candidata à vice-presidência mantém ligações com ex-militares próximos da ditadura e com grupos católicos de extrema-direita. Ao mesmo tempo, apresenta-se como uma “rapariga conservadora”, admiradora da italiana Giorgia Meloni, com um discurso bem articulado e um muito bom desempenho como polemista. Ativista da “memória completa” dos anos 70, repete o discurso, já ensaiado pelos repressores, de que houve excessos e não um plano sistemático de terrorismo de Estado como já decidiu a justiça argentina. Enquanto Milei, como rothbardiano, deveria ser contra, ela defende o retorno do serviço militar obrigatório e o aumento do orçamento militar. Trata-se de uma aliança ideologicamente instável mas coerente com as hibridações atuais da extrema-direita. Um dos enviados do partido ultra espanhol Vox, de matriz nacional católica e pós-franquista, Hermann Tertsch, esclareceu em Buenos Aires, onde se deslocou para apoiar Milei, que, embora o Vox não seja libertário, tem o suficiente em comum com o argentino para o integrar na sua frente internacional anti-progressista.

Milei tem uma visão da democracia que retoma conceitos dos libertários desiludidos de Silicon Valley. Por exemplo, os chamados neo-reacionários promovem diretamente a ideia de que a liberdade deve ser separada da democracia. Não é por acaso que Milei está sempre a falar de liberdade mas nunca de democracia. Nem que considere o Estado democrático um “pedófilo num jardim de infância”, enquanto o Estado ditatorial dos anos 70 – que literalmente matava e violava – só teria cometido excessos. Como recordava recentemente Enzo Traverso a propósito de outro tema, a democracia não é apenas um sistema de disposições institucionais mas também uma cultura, uma memória e um conjunto de experiências. Milei – e, mais ainda, Villarruel – é alheio à cultura, à memória e ao conjunto de experiências que – não sem problemas – foram marcando a transição democrática argentina, justamente no momento em que se comemora o 40º aniversário.

O problema de Milei é que o seu paleo-anarco-capitalismo, apesar de se ligar a algumas sensibilidades atuais, como se vê nas suas raízes juvenis, mesmo em sectores populares, continua a ser, em grande medida, uma “ideia fora do lugar”, até no seu próprio partido. A sociedade argentina, apesar do seu momento inconformista, combina o voto no libertário com a vigência de uma forte legitimidade de reformas mais ou menos recentes, como o casamento igualitário ou a legalização do aborto. Existe também um consenso sobre a saúde pública e a educação, apesar da sua forte deterioração. O movimento de mulheres é hoje muito dinâmico e já sabemos que, em vários países, tem sido um dos principais diques de contenção contra a direita reacionária e as suas “guerras culturais” (Brasil, Polónia).

A própria construção política de Milei é bastante caótica – repleta de micro-empreendimentos políticos locais, oportunistas e libertários de última hora – com vários deputados eleitos que ameaçam abandonar o espaço, o que pode prenunciar uma dissolução se Milei perder a segunda volta. E um cenário de incerteza sem precedentes, se ele ganhar.

A vantagem de Milei na corrida para 19 de novembro é que já amortizou as fugas de vídeos – geralmente anteriores à sua candidatura – com posições extravagantes para um candidato presidencial, como quando disse que preferia a máfia ao Estado, insultou o Papa Francisco por ser a favor da justiça social ou afirmou que o seu herói era Al Capone. Hoje, a sua estratégia, tanto quanto consegue, é parecer tranquilo e colocar a “violência” do lado do kirchnerismo e de Massa, um candidato centrista e pragmático que carrega o fardo de ser ministro da economia de um país com uma inflação de 140% ao ano, e também o da sua aliança com Cristina Fernández de Kirchner, que apesar de manter uma popularidade não desprezível, gera rejeições tão apaixonadas quanto os seus apoios.

Poderá Milei ser candidato e, eventualmente, um presidente “normal”? O estado psíquico do candidato e a excentricidade das suas próprias ideias fazem soar os alarmes mas ao mesmo tempo alimentam uma certa morbidez social de que, no final, tudo acabe por explodir, como compensação, se não material pelo menos psicológica, face à crise crónica em que o país se encontra. Uma espécie de bungee jumping político.


Pablo Stefanoni é editor-chefe da Nueva Sociedad. Coautor, com Martín Baña, de Tudo o que você precisa saber sobre a Revolução Russa (Paidós, 2017) e autor de A rebelião virou à direita? (Século XXI, 2021).

Artigo publicado originalmente na Nueva Sociedad. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.